Festa de criança tem uma aura diferente. Afinal, como é possível reunir dúzias de guris sem que (geralmente) haja algum tipo de catástrofe? Inexplicável. Assim que você chega, os empurrões em suas canelas (causados pelo tráfego mirim) denunciam que aquele é um ambiente incomum. Se não tomar cuidado, você pode até atropelar alguém. Ou ser atropelado por um comboio.
E festa com cama elástica? Magia pura. Afinal, talvez este seja o único método eficaz para confinar 27 crianças em um espaço com capacidade para umas 12, no máximo. Elimina-se, de uma vez só, a correria entre as mesas, a queda misteriosa das cadeiras e a tradicional ralação de joelhos. Você se preocupa com o risco de um esborrachamento coletivo no brinquedo, mas logo se resigna ao papel de convidado. Engole os palpites junto com um copinho de refrigerante.
Após os cumprimentos e a entrega do presente (que a criança nem olha, ou que fica guardado com alguém), acha uma mesa. De preferência perto da cozinha. Afinal, tão importante quanto o carinho com o aniversariante é o apreço às frituras e aos açúcares. Em festa de criança vale até sair da dieta. Vale destruir a dieta.
Assim que você se senta, descobre uma pequena bandeja de salgadinhos em sua mesa. Prontamente começa a degustar tudo, como se sua vida dependesse disso. Vem a garçonete:
- Aceita mais um pratinho, senhor?
- Sim, por favor - responde, glutão.
O ritual se repete algumas vezes, e suas pernas dormentes denunciam que você não se levantou durante a primeira hora do festejo. Interagiu apenas com uns dois adultos e com o Rodrigo, que descobriu ser sobrinho da prima de uma convidada. Criança esperta, o Rodrigo. Resolve se levantar e dar uma espiada no pula-pula – que a essa hora já havia concentrado 33 crianças e oito brinquedos (pisoteados) simultaneamente.
Levanta-se e logo oferecem uma coxinha. Você aceita, apesar de, em menos de uma hora, já ter consumido gordura suficiente para entupir a carótida. Uma delícia. No caminho, observa um grupo de crianças disputando uma espécie de corrida em uma escada, enquanto alguns dissidentes do pula-pula passavam de mesa em mesa demonstrando verdadeiros talentos de parkour.
Mal engole a coxinha, e logo em seguida chega a você o mini-espetinho de frango. Irresistível. A primeira mordida rapidamente dá lugar a momentos de pânico incontrolável: aquele fiapo de frango ficou agarrado entre os molares, e uma análise sensorial mais atenta mostra que os incisivos também foram vítimas.
Você luta com a língua, em silêncio, e nada do frango sair. Tenta exaustivamente arrancar aquele intruso de sua boca sem que ninguém perceba, mas o máximo que consegue é uma dor na língua. Resolve mudar o trajeto e ir ao banheiro. No caminho, desvia de sete caminhões de plástico, dois palhaços e um trenzinho de brinquedo, para se dar conta de que errou a direção. Volta, enquanto sente que, sem querer, quase chutou três garotos que (jura) brotaram do chão.
Ao chegar lá, percebe que não há espelho. Tampouco fio dental. Enxágua a boca, tenta arrancar uma linha da própria roupa para fazer o serviço sujo, sem sucesso. Derrotado, volta para a mesa. Higiênico e com uma obsessão especial por dentes limpos, você decide não falar mais. Nas conversas seguintes, responde apenas com grunhidos emitidos com a mão sobre a boca.
- Hmm. Hm-hum. Nmmmm, diz.
- Grhnonon hmm?, indaga.
Enquanto isso, mais um grupo de crianças excursiona pela escada. Muitas ainda carregam presentes, e a outra parte da turba se concentra em segurar um cachorro ainda filhote. “De onde surgiu esse cachorro?”, pensa. “Será que foi presente?”. Se tivesse que apontar um responsável pelo sequestro, o palpite iria para o menino com a máscara de leãozinho. O jeito fofo dele não o engana. Ou teria sido a Joana, aquela com a câmera? Uma fofura, também. Ou seria uma dessas anarquistas da imprensa, disfarçada? Hmm.
Chega a mãe do aniversariante e corta seus pensamentos.
- Vamos cantar o parabéns? – grita.
- Hmmphs! – você responde.
Nova jornada até a mesa do bolo. Mas dessa vez, ao menos, poderia comer os doces. Sem fiapos.
Festa de criança é uma beleza, mesmo.
quinta-feira, 7 de agosto de 2014
domingo, 3 de agosto de 2014
Dilemas de consultório
O sujeito chega ao consultório e a secretária logo pega o telefone:
- Aloan. Sim, é do consultório do doutor Horácio. Sim, ele tem vaga pra próxima semana. Qual o nome? Sim, o nome. Eu preciso do nome para marcar a consulta, meobem. Do paciente, correto. Sim, paciente é o doente, no caso.
Enquanto isso você fica lá parado, esperando, com um olhar compreensivo (afinal, atender as ligações faz parte do trabalho dela). Fica quase admirado com a calma da jovem. Paciente é ela, pensa. Segue a conversa:
- É com dois T’s? Ah, sim, com dois P’s. Tem H depois? Ah, certo. Pode soletrar e confirmar então, por favor? Arram. Arram. Certo. Oquei. Entendi. Marcado então, seu Stepphano.
Ela desliga o telefone ao mesmo tempo em que você abre um sorriso piedoso. Com um sinal, ela lhe convida a se aproximar, e pede o documento de identificação. Você o apresenta imediatamente, pulando (com sorte) o embaraço de abrir a carteira com pressa e despejar no chão meses de papeis acumulados, frutos da sua procrastinação. Ao menos eliminou o risco de ser visto como um obsessivo compulsivo porco.
A secretária compara sua foto no documento com sua face atual. Você se sente ridículo – afinal, aquela foto tem mais de dez anos. E hoje você tem mais que uma dezena de novos fios brancos. Ela começa a preencher o cadastro eletrônico, mas logo se distrai com um e-mail. “Desculpe, mas hoje em dia, sabe como é... Temos que ficar conectados o tempo todo”. Volta ao cadastro.
- Profissão? Urrum. CPF? Endereço? Ah, sim. Conheço essa rua. Uma tia minha mora na vizinhança. E sabe que outro dia... Ela abre a boca e ameaça dizer mais uma palavra, mas logo o telefone volta a tocar. Sem pensar duas vezes, ela atende.
- Aloan. Não, o doutor Horácio não pode atender. Não, infelizmente não. Não, querida. Veja só: ele está em consulta. Daqui a pouquinho você volta a ligar, tá? Promeeeto que passo a ligação pra ele.
E você continua lá, parado, desejando apenas se misturar entre os outros pacientes na sala de espera. Por ser o único de pé (e talvez pelo nariz, que insiste em escorrer) é alvo de todos os olhares. Se sente meio panaca e pensa em buscar uma cadeira, se escondendo atrás de uma planta de plástico no cantinho. Mas logo a secretária retoma:
- Desculpa, meobem. Sabe como é, né? Esse telefone enlouquece a gente. Temos que atender.
- Tudo bem, tudo bem – você responde, enquanto pensa o oposto.
No finalzinho do cadastro, a secretária se lembra de uma informação crucial que deveria ter sido preenchida antes. Ela cancela tudo e abre outra planilha. Começa a digitar o nome e repete a ladainha:
- Profissão? Ah, é mesmo. CPF? Zero três? Não era zero seis? Ah, então tá. Tem razão. Endereço? Hmmmmm, já te falei que uma tia mora na vizi...
Toca o telefone.
- Aloan. Não, o Dr. Horácio ainda está em consulta, querida. Sim, eu sei que pedi para você ligar “daqui a pouquinho”. Acho que dez minutos. Isso.
Enquanto isso você começa a desconfiar da eficácia da sua presença física. A mediação é a chave, pensa. Discretamente pega seu smartphone e começa a redigir um e-mail com todos os dados da sua ficha. Envia, e a secretária o recebe. Imediatamente ela informa:
- Só mais um minutinho, meobem. Chegou outro e-mail, acho que deve ser importante. Hmm. Engraçado. Alguém que mora na mesma rua que minha t...
Toca o telefone.
- Aloan.
Pronto, era o fim. Virou chacota. Você passa a se sentir tão importante quanto a planta de plástico no cantinho. Se não precisasse tanto, desistiria da jornada. Mas a garganta já o atormentava há uma semana. Por fim, resolve agir: pega o telefone e o deixa a postos. Assim que a linha fica livre, liga para a secretária. Ali mesmo, na frente dela.
- Aloan.
- Oi, aqui é o Carlos.
- Quem? Desculpa, meobem. Estão falando um pouco alto aqui no consultório.
- O Carlos. Estou na sua frente.
- Mas por que você ligaria para mim estando na minha frente?
- EU MORO NA RUA DA SUA TIA. EU! – você esbraveja, enquanto gesticula e toma o telefone da mão da secretária.
Finalmente seria atendido – isso se a impressão digital já estivesse cadastrada pelo plano de saúde. Mas já era uma vitória. O homem venceu as máquinas, ainda que temporariamente.
- Aloan. Sim, é do consultório do doutor Horácio. Sim, ele tem vaga pra próxima semana. Qual o nome? Sim, o nome. Eu preciso do nome para marcar a consulta, meobem. Do paciente, correto. Sim, paciente é o doente, no caso.
Enquanto isso você fica lá parado, esperando, com um olhar compreensivo (afinal, atender as ligações faz parte do trabalho dela). Fica quase admirado com a calma da jovem. Paciente é ela, pensa. Segue a conversa:
- É com dois T’s? Ah, sim, com dois P’s. Tem H depois? Ah, certo. Pode soletrar e confirmar então, por favor? Arram. Arram. Certo. Oquei. Entendi. Marcado então, seu Stepphano.
Ela desliga o telefone ao mesmo tempo em que você abre um sorriso piedoso. Com um sinal, ela lhe convida a se aproximar, e pede o documento de identificação. Você o apresenta imediatamente, pulando (com sorte) o embaraço de abrir a carteira com pressa e despejar no chão meses de papeis acumulados, frutos da sua procrastinação. Ao menos eliminou o risco de ser visto como um obsessivo compulsivo porco.
A secretária compara sua foto no documento com sua face atual. Você se sente ridículo – afinal, aquela foto tem mais de dez anos. E hoje você tem mais que uma dezena de novos fios brancos. Ela começa a preencher o cadastro eletrônico, mas logo se distrai com um e-mail. “Desculpe, mas hoje em dia, sabe como é... Temos que ficar conectados o tempo todo”. Volta ao cadastro.
- Profissão? Urrum. CPF? Endereço? Ah, sim. Conheço essa rua. Uma tia minha mora na vizinhança. E sabe que outro dia... Ela abre a boca e ameaça dizer mais uma palavra, mas logo o telefone volta a tocar. Sem pensar duas vezes, ela atende.
- Aloan. Não, o doutor Horácio não pode atender. Não, infelizmente não. Não, querida. Veja só: ele está em consulta. Daqui a pouquinho você volta a ligar, tá? Promeeeto que passo a ligação pra ele.
E você continua lá, parado, desejando apenas se misturar entre os outros pacientes na sala de espera. Por ser o único de pé (e talvez pelo nariz, que insiste em escorrer) é alvo de todos os olhares. Se sente meio panaca e pensa em buscar uma cadeira, se escondendo atrás de uma planta de plástico no cantinho. Mas logo a secretária retoma:
- Desculpa, meobem. Sabe como é, né? Esse telefone enlouquece a gente. Temos que atender.
- Tudo bem, tudo bem – você responde, enquanto pensa o oposto.
No finalzinho do cadastro, a secretária se lembra de uma informação crucial que deveria ter sido preenchida antes. Ela cancela tudo e abre outra planilha. Começa a digitar o nome e repete a ladainha:
- Profissão? Ah, é mesmo. CPF? Zero três? Não era zero seis? Ah, então tá. Tem razão. Endereço? Hmmmmm, já te falei que uma tia mora na vizi...
Toca o telefone.
- Aloan. Não, o Dr. Horácio ainda está em consulta, querida. Sim, eu sei que pedi para você ligar “daqui a pouquinho”. Acho que dez minutos. Isso.
Enquanto isso você começa a desconfiar da eficácia da sua presença física. A mediação é a chave, pensa. Discretamente pega seu smartphone e começa a redigir um e-mail com todos os dados da sua ficha. Envia, e a secretária o recebe. Imediatamente ela informa:
- Só mais um minutinho, meobem. Chegou outro e-mail, acho que deve ser importante. Hmm. Engraçado. Alguém que mora na mesma rua que minha t...
Toca o telefone.
- Aloan.
Pronto, era o fim. Virou chacota. Você passa a se sentir tão importante quanto a planta de plástico no cantinho. Se não precisasse tanto, desistiria da jornada. Mas a garganta já o atormentava há uma semana. Por fim, resolve agir: pega o telefone e o deixa a postos. Assim que a linha fica livre, liga para a secretária. Ali mesmo, na frente dela.
- Aloan.
- Oi, aqui é o Carlos.
- Quem? Desculpa, meobem. Estão falando um pouco alto aqui no consultório.
- O Carlos. Estou na sua frente.
- Mas por que você ligaria para mim estando na minha frente?
- EU MORO NA RUA DA SUA TIA. EU! – você esbraveja, enquanto gesticula e toma o telefone da mão da secretária.
Finalmente seria atendido – isso se a impressão digital já estivesse cadastrada pelo plano de saúde. Mas já era uma vitória. O homem venceu as máquinas, ainda que temporariamente.
quinta-feira, 31 de julho de 2014
Sobre o prazer das filas e um encontro com o Veríssimo
Filas triplas: diversão garantida. |
Particularmente acho que as filas são um sistema justo (até que alguém tente furá-las, claro), e, mais que isso: por mais entediantes que possam ser para os mais apressados ou pessimistas, funcionam como uma contagem regressiva. Chegar na outra ponta é praticamente uma vitória - basta perguntar a alguém que está na fila do banheiro. Não distribuem medalhas (e na maioria dos casos ainda pegam um pouco do seu dinheiro), mas há, invariavelmente, a sensação de dever cumprido, de ter alcançado o pote de ouro no final do arco-íris. Por alguns segundos tudo parece ter valido a pena. Sem glamour, chuva de papel picado ou garrafas de champanhe - mas ainda assim. Menos uma conta. Menos um problema.
O real motivo do post
"Err.. Oi, Veríssimo! Obrigado por me inspirar" |
Sensação estranha essa de ver ali, na sua frente, a personificação de um ídolo. As pernas tremem um pouco, suas mãos passam a ser intrusas no seu próprio corpo. Sobram. "Devo cumprimentá-lo efusivamente? Acenar com a cabeça? Correr e abraçá-lo?"foram alguns dos pensamentos mais imediatos. Fiquei só no aperto de mão e na troca de algumas palavras, mas comprovei que, além do nome, ele é mesmo superlativo absoluto sintético (já que é assumidamente mais calado, heh).
De repente, todos aqueles textos que fizeram (e fazem) parte da minha vida ganharam um pai de carne e osso, que tem nas palavras medidas uma fonte de inspiração não apenas literária, mas para a vida. O Veríssimo começou a escrever depois dos trinta, criou um estilo próprio e fugiu da sombra do pai. Foi um sucesso gradual e retumbante. Por isso é inspiração para os que ainda ficam perdidos/desiludidos/desorientados com todas as pressões profissionais e do cotidiano (como eu). O Veríssimo me mostrou que, por pior que uma situação pareça, ao menos rende uma crônica. Nem que seja sobre filas, braguilhas ou ervilhas. Valeu a pena esperar.
domingo, 27 de julho de 2014
Livro pra presente
Este é apenas um breve relato de L., um homem que possuía o hábito de dar livros de presente. Em qualquer ocasião, lá estava ele, com livro e dedicatória em mãos. Para L., o gesto significava mais do que o carinho comum atribuído ao presentear. Significava uma jornada prazerosa, concluída após muita pesquisa – afinal, a cada data comemorativa ele passava horas na livraria em busca do título ideal, ou vasculhava o repertório literário mental durante bons momentos. “É preciso, afinal, adequar a obra à pessoa”, acreditava. Tarefa delicada. Com tantas opções, haveria critérios demais a serem considerados. Letras demais a serem analisadas. Na dúvida, L. confiava nos seus próprios gostos e julgamentos.
Junto com esse costume, ele adquiriu também um hábito questionável: L. gostava de ler tudo logo após a compra. Mesmo que fosse um presente – o que significava violar as páginas de um novo livro, infringindo o prazer do receptor em desvirginar tão sedosas páginas. De modos pacatos, esta era a única ousadia a qual se permitia conscientemente. Era um maníaco literário. Desobedecia as amarras sociais e, ao pensar nisso, sorria.
Apesar de contestável, não se pode dizer que a quase defloração de lombadas e encadernamentos eram ações pouco generosas ou mesquinhas. L. pensava nisso tudo como um test-drive contra os maus títulos. Assim ele protegeria o presenteado das possíveis falácias gramaticais e checaria a qualidade de páginas e palavras (aproveitando para dar uma verificada atrás das orelhas – partes integrantes, apesar de esquecidas, de um corpo literário).
O gesto peculiar acabou criando um problema financeiro-psicológico para L.: no fim, ele não conseguia se desfazer das obras recém-adquiridas. Se fossem ruins, não haveria coragem para presentear; se boas, pior ainda: guardava para sua própria coleção. A solução? Ir novamente à livraria e comprar um novo exemplar – recomeçando toda a jornada (um tanto penosa em caso de desilusão ortográfico-literária). Mais aniversários, mais gastos, mais leituras acumuladas, tudo resultando em mais stress – que pelo menos rendia alguma cultura extra, no fim das contas.
Quando aumentou o círculo social, começou a enlouquecer. Mal dava conta das leituras cotidianas, e quando percebia já era refém de nova efeméride. Pensava com alegria no bolo e na esbórnia vindouros (como um bom glutão), mas lembrava também do livro a ser entregue como presente. Aquelas cedilhas pendentes, os travessões ameaçadores e os objetos nem sempre tão diretos o assombravam. Ficava desesperado, e, ao mesmo tempo, se entristecia ao lembrar da aposentadoria do trema. Por uma semana faltava tempo e sobrava angústia. Pior: sobravam palavras.
Em alguns meses passou a ter de lidar com mais de um aniversário por semana e, com isso, veio a cartada final: L. não mais conseguia fazer a leitura prévia das obras, como sua obsessão exigia. Para isso, precisaria de uma agenda própria, um planejamento literário. Desistiu. Por um tempo, viveu a sensação de aventura ao presentear com um título até então desconhecido. Mas foi dissuadido por seus próprios pensamentos: “E se o livro tivesse um magnífico título, avaliações perspicazes, mas, no fim das contas, falasse sobre... Cebolinhas? Aspargos? Tecidos e estampas?”, questionava. Um perigo paradoxal envolvendo palpitação e monotonia em centenas de páginas.
Por motivos de saúde (dele, não dos outros), acabou desistindo de presentear com livros; a partir de então eles seriam apenas artigos de uso próprio ou familiar. Optou por presentear com chocolates, guloseimas gordurosas e vinhos: menos intenso, mas (ironicamente) muito mais saudável. Na pior das hipóteses, ao menos o brinde já estaria garantido.
Junto com esse costume, ele adquiriu também um hábito questionável: L. gostava de ler tudo logo após a compra. Mesmo que fosse um presente – o que significava violar as páginas de um novo livro, infringindo o prazer do receptor em desvirginar tão sedosas páginas. De modos pacatos, esta era a única ousadia a qual se permitia conscientemente. Era um maníaco literário. Desobedecia as amarras sociais e, ao pensar nisso, sorria.
Apesar de contestável, não se pode dizer que a quase defloração de lombadas e encadernamentos eram ações pouco generosas ou mesquinhas. L. pensava nisso tudo como um test-drive contra os maus títulos. Assim ele protegeria o presenteado das possíveis falácias gramaticais e checaria a qualidade de páginas e palavras (aproveitando para dar uma verificada atrás das orelhas – partes integrantes, apesar de esquecidas, de um corpo literário).
O gesto peculiar acabou criando um problema financeiro-psicológico para L.: no fim, ele não conseguia se desfazer das obras recém-adquiridas. Se fossem ruins, não haveria coragem para presentear; se boas, pior ainda: guardava para sua própria coleção. A solução? Ir novamente à livraria e comprar um novo exemplar – recomeçando toda a jornada (um tanto penosa em caso de desilusão ortográfico-literária). Mais aniversários, mais gastos, mais leituras acumuladas, tudo resultando em mais stress – que pelo menos rendia alguma cultura extra, no fim das contas.
Quando aumentou o círculo social, começou a enlouquecer. Mal dava conta das leituras cotidianas, e quando percebia já era refém de nova efeméride. Pensava com alegria no bolo e na esbórnia vindouros (como um bom glutão), mas lembrava também do livro a ser entregue como presente. Aquelas cedilhas pendentes, os travessões ameaçadores e os objetos nem sempre tão diretos o assombravam. Ficava desesperado, e, ao mesmo tempo, se entristecia ao lembrar da aposentadoria do trema. Por uma semana faltava tempo e sobrava angústia. Pior: sobravam palavras.
Em alguns meses passou a ter de lidar com mais de um aniversário por semana e, com isso, veio a cartada final: L. não mais conseguia fazer a leitura prévia das obras, como sua obsessão exigia. Para isso, precisaria de uma agenda própria, um planejamento literário. Desistiu. Por um tempo, viveu a sensação de aventura ao presentear com um título até então desconhecido. Mas foi dissuadido por seus próprios pensamentos: “E se o livro tivesse um magnífico título, avaliações perspicazes, mas, no fim das contas, falasse sobre... Cebolinhas? Aspargos? Tecidos e estampas?”, questionava. Um perigo paradoxal envolvendo palpitação e monotonia em centenas de páginas.
Por motivos de saúde (dele, não dos outros), acabou desistindo de presentear com livros; a partir de então eles seriam apenas artigos de uso próprio ou familiar. Optou por presentear com chocolates, guloseimas gordurosas e vinhos: menos intenso, mas (ironicamente) muito mais saudável. Na pior das hipóteses, ao menos o brinde já estaria garantido.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
Sobre a desnecessária formalização do amor
Por que falar de amor é algo tão formal? Fico imaginando como seriam algumas situações sem as formalidades já padronizadas. Já há manuais, livros, tudo na tentativa de formalizar a fórmula certa. Sem sucesso.
Até mesmo para escrever sobre o assunto é assim: preparamos nossas palavras mais difíceis, ligamos sentenças com maestria ou tecemos versos como poetas da gramática, e não da paixão. Em muitas ocasiões nos preocupamos em registrar ali o léxico perfeito, e não o que nos consome, o que soa mais urgente. O visceral fica em segundo plano. (Talvez pela própria natureza da ideia ‘visceral’. O mais imediato é gritar e chorar, não escrever).
Exemplo clássico da formalidade do amor é o “precisamos conversar”. A frase traz, de imediato, presságios solenes e impessoais. Já armamos a nossa guarda enquanto buscamos nos desfazer do automático nó na garganta. Tentamos, inutilmente, nos proteger do sofrimento que parece inevitável: daquela punhalada nas costas que está prestes a nos rasgar por dentro. E depois agüentamos todo aquele impacto repentino. Uma bomba.
[que fique claro: não defendo, com isso, a conversa total e exclusivamente impessoal por sms, e-mail. Ainda acho que 'o meio é a mensagem' - alô, McLuhan!].
Até com os amigos é assim: "Vamos marcar de conversar? Preciso de alguns conselhos". Marca-se o encontro e, então, a revelação: "Acho que estou apaixonado pela Ju!". Por que não dizer logo? Comemorar? Adiantaria-se os cálculos da (im)provável reciprocidade.
E as alianças, então? Outra formalização do sentimento. Parece-nos que não basta sentir: é preciso mostrar que sentimos. E que sentimos muito, amamos intensamente, mais do que qualquer outro casal. Precisamos ser 'mais', superiores em tudo - inclusive na dor. Vivemos com a constante necessidade de aprovação (No plural. Não me excluo disso, pelo contrário).
Não desprezo ou rebaixo a importância do amor, mas destaco a naturalidade do sentimento. Todo mundo ama (ou já quis amar), e nada mais justo do que sentir, aproveitar sem delongas o que as doses de ocitocina nos proporcionam.
Já imaginou falar sobre ardentes paixões em uma mesa de bar? Entre os homens fala-se de sexo, mas raramente há divagações e questionamentos sem que haja embaraço de um dos presentes. "Homem não pode ser sensível desse jeito!", pensam. Muda-se o assunto rapidinho. Afinal, ninguém quer ser visto como o antiquado da turma. O 'fresco'.
De certa forma é interessante imaginar o amor descomplicado. Fica até cômico. "Oi, Sara! Barulhento aqui no bar, né? Mas então. Você é linda, adoro suas ideias, acho que me apaixonei por você!" – diria o rapaz, enquanto gesticula para que lhe passem as batatas na outra ponta da mesa e tenta, em vão, remover aquele pedaço da porção de frango à passarinho que insiste em permanecer entre seus incisivos.
No mesmo momento alguém também pediria: "garçom! Ei, garçom! Me traz aí um amor, mas nada dessas porcarias idealizadas! Porção? Não, não. Amor deve ser servido inteiro. E capricha no tempero!".
Definitivamente saboroso.
__
TÁXI
"O poeta passa de táxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão
deste universo.
Como será o amor das pessoas rudes? O poeta não se conforma de não conhecer
todas as formas de delicadeza."
(CACASO, 2002)
Até mesmo para escrever sobre o assunto é assim: preparamos nossas palavras mais difíceis, ligamos sentenças com maestria ou tecemos versos como poetas da gramática, e não da paixão. Em muitas ocasiões nos preocupamos em registrar ali o léxico perfeito, e não o que nos consome, o que soa mais urgente. O visceral fica em segundo plano. (Talvez pela própria natureza da ideia ‘visceral’. O mais imediato é gritar e chorar, não escrever).
Exemplo clássico da formalidade do amor é o “precisamos conversar”. A frase traz, de imediato, presságios solenes e impessoais. Já armamos a nossa guarda enquanto buscamos nos desfazer do automático nó na garganta. Tentamos, inutilmente, nos proteger do sofrimento que parece inevitável: daquela punhalada nas costas que está prestes a nos rasgar por dentro. E depois agüentamos todo aquele impacto repentino. Uma bomba.
[que fique claro: não defendo, com isso, a conversa total e exclusivamente impessoal por sms, e-mail. Ainda acho que 'o meio é a mensagem' - alô, McLuhan!].
Até com os amigos é assim: "Vamos marcar de conversar? Preciso de alguns conselhos". Marca-se o encontro e, então, a revelação: "Acho que estou apaixonado pela Ju!". Por que não dizer logo? Comemorar? Adiantaria-se os cálculos da (im)provável reciprocidade.
E as alianças, então? Outra formalização do sentimento. Parece-nos que não basta sentir: é preciso mostrar que sentimos. E que sentimos muito, amamos intensamente, mais do que qualquer outro casal. Precisamos ser 'mais', superiores em tudo - inclusive na dor. Vivemos com a constante necessidade de aprovação (No plural. Não me excluo disso, pelo contrário).
Não desprezo ou rebaixo a importância do amor, mas destaco a naturalidade do sentimento. Todo mundo ama (ou já quis amar), e nada mais justo do que sentir, aproveitar sem delongas o que as doses de ocitocina nos proporcionam.
Já imaginou falar sobre ardentes paixões em uma mesa de bar? Entre os homens fala-se de sexo, mas raramente há divagações e questionamentos sem que haja embaraço de um dos presentes. "Homem não pode ser sensível desse jeito!", pensam. Muda-se o assunto rapidinho. Afinal, ninguém quer ser visto como o antiquado da turma. O 'fresco'.
De certa forma é interessante imaginar o amor descomplicado. Fica até cômico. "Oi, Sara! Barulhento aqui no bar, né? Mas então. Você é linda, adoro suas ideias, acho que me apaixonei por você!" – diria o rapaz, enquanto gesticula para que lhe passem as batatas na outra ponta da mesa e tenta, em vão, remover aquele pedaço da porção de frango à passarinho que insiste em permanecer entre seus incisivos.
No mesmo momento alguém também pediria: "garçom! Ei, garçom! Me traz aí um amor, mas nada dessas porcarias idealizadas! Porção? Não, não. Amor deve ser servido inteiro. E capricha no tempero!".
Definitivamente saboroso.
__
TÁXI
"O poeta passa de táxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão
deste universo.
Como será o amor das pessoas rudes? O poeta não se conforma de não conhecer
todas as formas de delicadeza."
(CACASO, 2002)
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