quinta-feira, 31 de julho de 2014

Sobre o prazer das filas e um encontro com o Veríssimo

Filas triplas: diversão garantida.
Tive um professor que não se cansava de repetir que adorava filas. Todas elas, segundo ele, mereciam admiração - da fila do pão à temível espera pelo atendimento bancário. A justificativa era simples: lá você poderia fazer amizades, dar um pausa nos afazeres e se concentrar um pouco mais no que estava ao redor; olhar para (de fato) ver, enxergar em detalhes. Ficar "preso" na fila serviria como justificativa perfeita e quase universal, e, além disso, se a situação fosse bem aproveitada, poderia quase virar um programão de domingo. Melhor ainda se tivesse senha: assim daria para se sentar ou levantar, curtir um cafezinho, fazer a toalete e, com sorte, curtir a brisa do ar condicionado, dizia.

Particularmente acho que as filas são um sistema justo (até que alguém tente furá-las, claro), e, mais que isso: por mais entediantes que possam ser para os mais apressados ou pessimistas, funcionam como uma contagem regressiva. Chegar na outra ponta é praticamente uma vitória - basta perguntar a alguém que está na fila do banheiro. Não distribuem medalhas (e na maioria dos casos ainda pegam um pouco do seu dinheiro), mas há, invariavelmente, a sensação de dever cumprido, de ter alcançado o pote de ouro no final do arco-íris. Por alguns segundos tudo parece ter valido a pena. Sem glamour, chuva de papel picado ou garrafas de champanhe - mas ainda assim. Menos uma conta. Menos um problema.

O real motivo do post

"Err.. Oi, Veríssimo! Obrigado por me inspirar"
No meu caso, na outra ponta da fila estava um ídolo. Ontem conheci o Luís Fernando Veríssimo, minha inspiração há anos (aliás, o cito neste texto aqui, de 2006, quando eu ainda era um fedelho). Antes de chegar ao mestre, fiquei sabendo que o Exupéry, autor do Pequeno Príncipe, morou por um tempo na região de Petrópolis, discuti o governo do Getúlio, ouvi sobre Reforma Agrária e o papel da Princesa Isabel no processo. Também falei um pouco do Mário Prata, da carreira do próprio Veríssimo, sobre ervilhas e tofu. (Acabei entendendo melhor a teoria do meu antigo professor, aliás. Qualquer dia desses sairei com um banquinho em busca da fila mais descolada da cidade).

Sensação estranha essa de ver ali, na sua frente, a personificação de um ídolo. As pernas tremem um pouco, suas mãos passam a ser intrusas no seu próprio corpo. Sobram. "Devo cumprimentá-lo efusivamente? Acenar com a cabeça? Correr e abraçá-lo?"foram alguns dos pensamentos mais imediatos. Fiquei só no aperto de mão e na troca de algumas palavras, mas comprovei que, além do nome, ele é mesmo superlativo  absoluto sintético (já que é assumidamente mais calado, heh).

De repente, todos aqueles textos que fizeram (e fazem) parte da minha vida ganharam um pai de carne e osso, que tem nas palavras medidas uma fonte de inspiração não apenas literária, mas para a vida. O Veríssimo começou a escrever depois dos trinta, criou um estilo próprio e fugiu da sombra do pai. Foi um sucesso gradual e retumbante. Por isso é inspiração para os que ainda ficam perdidos/desiludidos/desorientados com todas as pressões profissionais e do cotidiano (como eu). O Veríssimo me mostrou que, por pior que uma situação pareça, ao menos rende uma crônica. Nem que seja sobre filas, braguilhas ou ervilhas. Valeu a pena esperar.

domingo, 27 de julho de 2014

Livro pra presente

Este é apenas um breve relato de L., um homem que possuía o hábito de dar livros de presente. Em qualquer ocasião, lá estava ele, com livro e dedicatória em mãos. Para L., o gesto significava mais do que o carinho comum atribuído ao presentear. Significava uma jornada prazerosa, concluída após muita pesquisa – afinal, a cada data comemorativa ele passava horas na livraria em busca do título ideal, ou vasculhava o repertório literário mental durante bons momentos. “É preciso, afinal, adequar a obra à pessoa”, acreditava. Tarefa delicada. Com tantas opções, haveria critérios demais a serem considerados. Letras demais a serem analisadas. Na dúvida, L. confiava nos seus próprios gostos e julgamentos.

Junto com esse costume, ele adquiriu também um hábito questionável: L. gostava de ler tudo logo após a compra. Mesmo que fosse um presente – o que significava violar as páginas de um novo livro, infringindo o prazer do receptor em desvirginar tão sedosas páginas. De modos pacatos, esta era a única ousadia a qual se permitia conscientemente. Era um maníaco literário. Desobedecia as amarras sociais e, ao pensar nisso, sorria.

Apesar de contestável, não se pode dizer que a quase defloração de lombadas e encadernamentos eram ações pouco generosas ou mesquinhas. L. pensava nisso tudo como um test-drive contra os maus títulos. Assim ele protegeria o presenteado das possíveis falácias gramaticais e checaria a qualidade de páginas e palavras (aproveitando para dar uma verificada atrás das orelhas – partes integrantes, apesar de esquecidas, de um corpo literário).

O gesto peculiar acabou criando um problema financeiro-psicológico para L.: no fim, ele não conseguia se desfazer das obras recém-adquiridas. Se fossem ruins, não haveria coragem para presentear; se boas, pior ainda: guardava para sua própria coleção. A solução? Ir novamente à livraria e comprar um novo exemplar – recomeçando toda a jornada (um tanto penosa em caso de desilusão ortográfico-literária). Mais aniversários, mais gastos, mais leituras acumuladas, tudo resultando em mais stress – que pelo menos rendia alguma cultura extra, no fim das contas.

Quando aumentou o círculo social, começou a enlouquecer. Mal dava conta das leituras cotidianas, e quando percebia já era refém de nova efeméride. Pensava com alegria no bolo e na esbórnia vindouros (como um bom glutão), mas lembrava também do livro a ser entregue como presente. Aquelas cedilhas pendentes, os travessões ameaçadores e os objetos nem sempre tão diretos o assombravam. Ficava desesperado, e, ao mesmo tempo, se entristecia ao lembrar da aposentadoria do trema. Por uma semana faltava tempo e sobrava angústia. Pior: sobravam palavras.

Em alguns meses passou a ter de lidar com mais de um aniversário por semana e, com isso, veio a cartada final: L. não mais conseguia fazer a leitura prévia das obras, como sua obsessão exigia. Para isso, precisaria de uma agenda própria, um planejamento literário. Desistiu. Por um tempo, viveu a sensação de aventura ao presentear com um título até então desconhecido. Mas foi dissuadido por seus próprios pensamentos: “E se o livro tivesse um magnífico título, avaliações perspicazes, mas, no fim das contas, falasse sobre... Cebolinhas? Aspargos? Tecidos e estampas?”, questionava. Um perigo paradoxal envolvendo palpitação e monotonia em centenas de páginas.

Por motivos de saúde (dele, não dos outros), acabou desistindo de presentear com livros; a partir de então eles seriam apenas artigos de uso próprio ou familiar. Optou por presentear com chocolates, guloseimas gordurosas e vinhos: menos intenso, mas (ironicamente) muito mais saudável. Na pior das hipóteses, ao menos o brinde já estaria garantido.