segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Existência, visibilidade e crachá

Não, o Guedes não começou a andar por aí disfarçado
de Groucho Marx.
O Guedes era o típico “introspectivo-sociável” do escritório: trabalhador, mas que não perdia uma boa piada. Não era um frequentador assíduo dos happy hours, mas marcava presença em alguns churrascos após o expediente. Homem bacana, que tinha uma boa relação com todos. Era lembrado com carinho no aniversário e em pequenas conquistas pessoais – como a data em que finalmente conseguiu completar a pós-graduação. Ganhou até festa.

Após três anos (sem férias) convivendo diariamente com as mesmas pessoas, Guedes decidiu abandonar o emprego. A partir daí, começou a perceber que sua existência era condicionada a um crachá com um número de inscrição pendurado no pescoço. A primeira suspeita aconteceu três meses depois de ter pedido demissão, ao avistar um antigo conhecido do trabalho no centro da cidade.

- Ô Pereira! Pereira! – chamou o Guedes, enquanto abanava os braços para o homem de terno a alguns passos dele.

O engravatado olhou e, diante de tanta insistência, caminhou até o antigo companheiro de trabalho.

- Oi. Tudo bem?
- E aí, rapaz! Quanto tempo, hein? Saudades de você. E como está o pessoal?
- O pessoal? Hmm, o pessoal está bem – respondeu o Pereira, meio sem saber quem era aquele homem (e a qual pessoal ele se referia).
- A galera do escritório, Pereira. Como eles estão? E a Flavinha? O Borges continua usando aquelas camisas ridículas? – riu o Guedes.
- Ahhh. Continua, continua – confirma o Pereira, ainda sem saber, ao certo, quem era aquele homem, e como ele conhecia tanto sobre sua vida profissional.
- Então tá. Vê se aparece. Manda um abraço para todo mundo – encerra o Guedes, percebendo que o Pereira não se lembrava dele (ou, ao menos, fingia não se lembrar).
- Pode deixar...

“Só pode ser a barba. Eu não usava barba naquela época. Mas... Será que fico tão irreconhecível assim? Acho que não. Sou apenas eu. De barba.”- pensa o Guedes.

Em outra situação, seis meses depois de pedir demissão do antigo trabalho, encontrou com a Flavinha em uma fila do teatro.

- Flavinha! Que saudade! Quanto tempo, hein? – se entusiasma o Guedes.
- Oooi..!? – responde a Flavinha, reticente.

E a história se repetiu. A Flavinha também não se lembrava do Guedes.

“Devem ter sido meus óculos... Eu quase não ia trabalhar de óculos naquela época. Isso, junto com a barba, deve ter me tornado irreconhecível.” – preferiu imaginar o Guedes.

Semana após semana, o Guedes encontrava com algum antigo companheiro de trabalho. Alguns trabalharam logo ao lado, trocaram comentários pessoais, conselhos, riram nas comemorações de fim de ano. Mas ainda assim não reconheciam o Guedes. Ao passarem por ele na rua, todos pareciam (ou fingiam) não vê-lo. Conveniência social ou distração genuína? (Afinal, o Guedes não tinha se tornado um grande figurão. Largou o emprego apenas porque queria mudar de ares, e continuava com a vidinha classe-média de sempre).

Seria possível que, em tão pouco tempo, tanto tenha mudado na fisionomia dele? O destino mostrou que não. A redenção do Guedes aconteceu quando ele se encontrou com a Julinha, um antigo amor da adolescência. Ele a avistou no supermercado.

- Julinha? – pergunta o Guedes, já meio sem graça.
- Não é possível...! Guedes, é você? Marquinhos Guedes? – se surpreende a mulher, abrindo um largo sorriso.
- Sim, eu mesmo! Quanto tempo... Mas... Como você me reconheceu, hein? – se espanta o Guedes, que já estava se sentindo invisível.
- Ahh, Guedes. Quem realmente deixa marcas na nossa vida nunca é esquecido, né? Aliás, você ficou muito bem de barba e com esses óculos intelectuais – ri a Julinha.
- Realmente... Impossível deixarmos marcas na vida de todo mundo... – autorreflete o Guedes.

O papo seguiu - dessa vez com um contato genuíno e espontâneo, sem burocracias ou falseamentos. Ele era novamente o Guedes, visível (e de barba).

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá. Gosto de suas crônicas. Seus temas, simples porém não óbvios,tem um caráter intimista, sensível,com tom sincero (parecem autobiográficos). Gosto muito do modo com você aborda os temas e do fato de eles sempre levarem a uma reflexão da vida de modo light, por exemplo: nessa crônica vimos que ninguém gosta de ser esquecido e todos queremos nos tornar importantes na vida de alguém. Gostaria também de pedir que postasse com maior frequência, já todas as outras.
Desde já agradeço.