segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Letalidade lavável

Sentou-se no ponto de ônibus e cruzou suas pernas sobre o banco, ajeitando a mochila entre suas coxas. Olhou para o relógio: o horário de seu ônibus há muito passara. Abaixou a cabeça e tampou seus olhos com o antebraço. À luz fraca dos postes já desgastados pelo tempo, tudo o que se via àquela hora era seu vulto encolhido, indefeso. Seus cabelos, que outrora já sustentaram um loiro e luminoso brilho, agora eram polidamente negros, como a mais bela das noites. A lua brilhava, mas não iluminava. Seu brilho não era tão diferente. Ela era apenas mais uma.

Sophia ficou ali sozinha durante longos minutos, ouvindo os ruídos da noite e pensando no dia anterior. Como um intruso, um clarão em sua mente a despertou. Junto dele, uma ideia. Com as costas das mãos, enxugou seus olhos, a essa altura já tomados pela fluidez de sua consciência. Fluidez de sabor salgado e insosso, que refletia não menos do que seu estado de espírito.

Abriu a mochila e pôs-se a escrever em um antigo bloquinho, guardado justamente para estas ocasiões especiais. “A inspiração aparece somente nas situações mais difíceis e insanas. Parece uma espécie de mórbido deleite. Irônico deleite da alma...”, pensou. Sua caligrafia ainda estava trêmula quando escreveu as primeiras palavras incertas e errantes. Parou e olhou para o lado, como se estivesse à mercê das próximas linhas a serem escritas. Sentiu medo. Olhou novamente à sua volta e, para seu espanto, não estava mais sozinha. Sentiu vergonha das palavras escritas, como se cada um daqueles olhares perdidos na noite se dirigissem exclusivamente a ela, despindo-a de toda a dignidade e respeito, conquistados ao longo de anos de árdua luta contra si mesma e seus impulsos mais ferozes.

Mesmo entre tantas pessoas se aglomerando na volta para casa, seu coração não reconhecia, naquele ambiente, qualquer porto seguro. Todas elas pareciam tubarões vorazes, prontos para um ataque dilacerante. Porém, nenhum ataque poderia ser mais feroz do que aquele feito por meio das palavras. Não aquelas ditas por ela. Desejou, por um momento, que algum desconhecido a poupasse de toda a dor e vergonha e corresse em direção a ela, dizendo todas as verdades que merecia, em alto som. Desejou a dor, nua e visceral. Quis a vingança. Em vão. Continuou ali, sentada com seu bloquinho na mão. Ele seria sua única ferramenta para ter tudo o que desejava. Ele seria sua única e mais letal arma.

A noite avançava, e Sophia continuava lá, meio sem jeito, encarando a folha de papel já completamente rabiscada. Sua arma letal, totalmente manchada pelas marcas da vida. Como um espelho de sua essência, aquele pedaço de papel exibia a verdadeira Sophia. Nele não havia maquiagem ou melhor ângulo; ele não engordava, não emagrecia, não exibia cor e, pior: sua letalitade era plenamente lavável e atóxica. Quando na água, poderia espalhar aos quatro cantos suas confissões mais secretas. “Letalidade reciclável. Memórias passageiras, que só deixam marcas na areia. Posteridade idealizada...”, resmungou Sophia, ao pensar na ideia.

Um comentário:

anna disse...

me identifiquei um pouco com ela, sempre levo um caderno comigoporque já percebi que as inspirações vêm em momentos inoportunos, mas nunca tenho coragem de sentar num lugar comum pra escrever.
fiz isso no Museu (Mariano Procópio, n parque, sabe?), mas foi tudo pensado hehe (vc devia experimentar)
gosto de coisa escrita em terceira pessoa, tenho um blog só pra isso, mas tá temporariamente parado :) agora posto em primeira pessoa em outro ;D
gostei desse post, vou ler tudo que eu aguentar ler hehehe a partir de agora.
bjo!